Relato de viagem visitando projetos socioambientais na América Latina, com foco em ecossistemas de montanha e percepção dos moradores sobre a crise do clima. O percurso inclui o planejamento, outras viagens, estradas de asfalto, de terra, trilhas, sonhos, pensamentos e caminhos do coração. / Relato de viaje visitando proyectos socioambientais en América Latina, con mirada en los ecosistemas de montaña y la percepción de la gente sobre la crisis del clima. Incluye el planeamiento, otros viajes…

terça-feira, 9 de junho de 2009

14. A lua nasce no Grand Canyon

Depois do retiro nas montanhas da Califórnia voltei à estrada, com os dias contados para retornar a Tucson e embarcar de volta ao Brasil. Uma enorme autopista me levava para o famoso Grand Canyon. Passei por muitos trailers e vans com casais não muito jovens, provavelmente aposentados, que nitidamente representam um importante público frequentador das estradas e parques nacionais americanos. Mas o cenário era monótono, quase sempre uma grande e larga reta no meio de um deserto. Tufos de capim atravessavam a pista girando em vôos rasantes. Uma placa indicando acesso à “Historic Rute 66” me chamou a atenção e sem um segundo de dúvida mudei rapidamente de cenário. Agora trafegava numa via de mão dupla, menos reta e com mais vegetação, com passagens de nível sobre a estrada de ferro. Inevitável pensar em trens, caravanas, cavalos, índios e perseguições. Subitamente a ficção se fez realidade ao surgir uma imensa placa: Bagdá Café. Continuei, imaginando que interessante se o famoso Café, cenário de cinema, poderia ser ali... Poderia... E era! Retornei e provei do café, ou de um refrigerante, não me lembro. Fui atendido pela neta da dona, que confirmou toda a história que já conhecemos. Prossegui atônito, pinçado pelo sonho real e agora de novo na estrada, rumo ao Grand Canyon... será que era tudo verdade?


Cheguei a grande cratera ao anoitecer. As últimas luzes deixavam o céu avermelhado e um vento gelado me cortava. No horizonte nascia imensa lua amarelada, que brilhava em restos de neve. Por instantes pensei ver as Agulhas Negras ao contrário, crescida em ar na direção do centro da terra. Mas meu tempo estava curto e tinha fome. Havia um enorme centro de visitantes (ali é um parque nacional), lotado de supérfluos e lembranças. Um perfeito Canyon Shopping e sua comida caríssima!

Voltei ao carro e segui para a famosa Sedona, mas a distância me venceu e dormi num motel
de 12 dólares após um bom e barato sanduíche.
(Fotos do Grand Canyon: http://www.nps.gov/grca/)

quarta-feira, 27 de maio de 2009

13. Rock no deserto mexicano

Participar da Semana Latino Americana, em Tucson, EUA, foi a grande notícia do ano de 1998. Num almoço casual com um professor da Universidade do Arizona, na casa de meus pais, no Rio, fui convidado para o evento, que aconteceria no início do ano seguinte. Animado em poder chegar ao hemisfério norte, providenciei passaporte, visto e logo me vi desembarcando em Los Angeles, numa fria e ensolarada manhã. Ansioso para pisar no solo ícone americano e respirar ar de verdade, saí uns minutos do aeroporto. Respirei, pisei e logo segui na conexão para Tucson, Arizona. O avião lotado era o retrato daquele povo, quase todos de chapéu e pinta de cowboy...

Fui muito bem recebido pelo anfitrião, que ainda no aeroporto me apresentou, chegando do Uruguai, uma das participantes do evento, de quem me tornei especialmente amigo ao longo da semana. No mínimo, afinidade à primeira vista. O seminário reuniu cinco profissionais latino americanos para uma serie de debates sobre cultura e meio ambiente com alunos e professores. Falei sobre a Floresta Atlântica, totalmente desconhecida por lá. Após o evento aluguei um carro para percorrer a região, começando por sair dos EUA e entrar no México, rumo à Reserva da Biosfera El Pinacate, onde tinha hospedagem.


Acostumei rápido com o cambio automático e o self service nas bombas de gasolina. Estava independente depois de uma semana sempre em grupo, com a saborosa sensação de que a viagem ia ser mais intensa a partir daquele momento. A primeira etapa foi rumo sul, direto para a tranqüila fronteira de entrada no México. Atravessando a divisa logo senti uma triste familiaridade ao contemplar, tão perto dos EUA, o ambiente pobre, sujo, desorganizado e falante – parecido com o Brasil. Lógico, nem um pouco ao acaso a pobreza é vizinha da opulencia.

A reserva estava no meio do deserto do Arizona (transfronteiriço), num calor terrível de dia e bastante frio à noite, com o céu mais estrelado que já vi. No cenário, cactos gigantes, arbustos e areia. À noite caminhava até ver as casas da estrutura administrativa como pequenas janelas iluminadas, entre o céu e a terra. No imaginário, um puma espreita e contempla. Após alguns dias acompanhando as rondas dos guarda parques, me despedi e prossegui viagem, rumo ao oeste, como antigamente. Antes tentei combinar um encontro com minha nova amiga. Queríamos seguir juntos naquela viagem. Após vários telefonemas para Tucson... nos desencontramos, traídos por uma secretária eletrônica...


Segui uma longa reta pela rodovia mexicana em direção a San Diego, Califórnia. Relevo perfeito para um bom filme, com penhascos rochosos, vento, areia, luzes e sombras. Era uma região deserta de gente também. O rádio permanecia ligado, na busca automática por alguma estação. Após horas de estrada, silêncio, liberdade, alegria, tristeza e coração apertado, subitamente sou invadido pelas inconfundíveis guitarras do rock clássico, em ritmo perfeito para acompanhar a paisagem e o retorno aos EUA. A estação California Classic Rock me acompanharia pelos próximos dias e muitos quilômetros, fundindo horizontes, sons e pensamentos. Após uma longa e demorada fila, passei pela rigorosa revista de fronteira (fácil sair, difícil entrar...). Os policiais beiravam a má educação, mas mudaram de comportamento e até passaram a falar espanhol, quando finalmente me viram como pessoa de bem.

Dormi em algum lugar e segui no dia seguinte para Encinitas, onde havia reservado um apartamento no alojamento da Self Realization Fellowship, junto ao eremitério onde viveu Paramahansa Yogananda. A cidade é cheia de surfistas, praias de pedras e penhascos de onde se vê o por do sol no Pacífico. Após o desencontro com minha nova amiga, tudo o que eu precisava era daquele acolhimento profundo, desfrutar a cidadezinha, caminhar pelos mágicos jardins e meditar. Para maior deleite, aluguei uma ótima bicicleta de competição e percorri a orla por toda uma tarde, cheia de sol e vento frio.

Mas não dava pra ficar parado muito tempo. Mais um dia e peguei estrada. Num percurso de cinco horas cortei Los Angeles por cima de autopistas gigantes até Santa Mônica, onde esta o santuário de Lake Shrine. Fim de tarde, encontrei o portão fechado. Implorei ao porteiro, que me deixou entrar para uma rápida e muito profunda visita na beleza daquele jardim, onde compreendi um pouco mais a unidade das religiões e o incrível poder do Yogananda.


O trajeto prosseguiu na rota espiritual. Atravessei as montanhas e passei três dias no retiro de Escondido, onde participava das meditações de grupo, além de meditar na minúscula capela dedicada a São Francisco, encravada num pequeno jardim em meio às montanhas da Califórnia, entre pinheiros e pedras. Longe do mar mergulhei em imenso oceano de paz.

domingo, 10 de maio de 2009

12. Carnaval, telefonema, engarrafamento, praia, bugre, primeiro amor - sutilezas que constroem a vida.

Sempre detestei perder tempo. Engarrafamento, fila de banco ou supermercado são exemplos de antieconomias da nossa sociedade. Os custos dessas horas perdidas são absurdos. Perdemos saúde e combustível, produzimos poluição...

Rio de Janeiro, em pleno sábado do carnaval de 83 estava mais perdido que nunca. Muita gente adoraria estar na minha situação: sozinho num apartamento em Copacabana, um carro na garagem e nenhum compromisso. Mas a liberdade me espremia a garganta e eu não tinha a menor idéia do que fazer. Nesse momento toca o telefone. Uma amiga me convida para visitar outra amiga, que eu conhecia de vista, em Arraial do Cabo. Sem dúvida, vamos! Poucas horas depois estava dentro de um engarrafamento monstro junto com metade da população do Rio em direção à Região dos Lagos. Calor infernal. Em certo momento decidi dar meia volta e pegar a pista que voltava, aproveitando a estrada de mão dupla. Minha amiga me conteve e agüentei o tranco... E graças ao telefonema inesperado, ao não retorno e a todas as sutilezas que constroem a vida, em Arraial vivi minha primeira grande e verdadeira experiência amorosa, com quem se tornou minha primeira esposa por três anos, na Serrinha. O retorno de Arraial foi singular. Voltei totalmente diferente de como fui, claro, mas o engraçado foi a caravana, porque precisamos ajudar um amigo a trazer seu bugre e sua moto para o Rio. Bom, minha amiga veio guiando o carro da família que eu usava, uma Variant daquela mais antiga, ele veio na moto e eu no Bugre, que mais parecia um kart gigante pulador. Mas gostei! No Rio destrocamos e segui com minha amada para a Serrinha, numa sensação maravilhosa de plenitude. Lembro que acabei ficando sem almoço, mas o jejum me trazia um sensação muito boa. Ao entardecer passamos a entrada de Penedo e iniciamos a subida pela estrada de terra (na época). Acelerei e disse: - Prepare-se para decolar. Decolamos juntos. Logo éramos três, acompanhados por um belo e real vira lata, o Malhado, que depois deixou filho e neto, todos de nome Malhado (não era só falta de imaginação, eram todos iguais mesmo).

Passei os três anos seguintes entre a Universidade Rural, o Rio, Arraial e o quase sempre feliz retorno para as montanhas, na Serrinha, além das muitas viagens que um relacionamento profundo proporciona, mesmo quando se tem apenas 23-26 anos e muita imaturidade.

sexta-feira, 1 de maio de 2009

11. 1980, Brasil-Chile-Brasil

1980 foi o ano do Chile. Deixei a casinha na Rural para morar com meus pais em Santiago, continuando lá o curso de Engenharia Florestal. Fomos de carro, uma Variant II lotada, inclusive com a inseparável bicicleta. Dirigi a maior parte do tempo, me deleitando com as linhas da estrada e as cores do céu nas longas tardes de verão. Era final de fevereiro e o calor no semi deserto argentino dava vontade de arrancar o teto do carro, apesar do vento quente. Mais uma vez atravessei a fronteira nevada e chegamos ao Chile após 5 dias de viagem, incluindo um dia de descanso com simpáticos parentes em Ijuí, não muito longe da fronteira argentina.

Apesar dos muitos novos e bons amigos chilenos não fiz longas viagens a não ser nos treinos de ciclismo, ao qual me dediquei intensamente. Alternava preparação física no traumático e famoso Estádio Nacional com pedaladas pelas estradas da pré-cordilheira. Aliás, a maior viagem foi justamente acompanhando a Volta do Chile como motociclista de apoio da equipe brasileira da Caloi. Desanimado com a faculdade intensamente voltada para a produção econômica de madeira, aproveitei o segundo semestre para me formar em monitoria teatral no excelente curso do teatro La Casa, onde compreendi, com o coração, o terrível significado de viver numa ditadura militar. Comecei a desconfiar de certos alimentos, experimentando opções que reduzissem o consumo de carne.



O retorno ao Brasil foi emocionante. Decidi voltar ao final do ano, incentivado pela triste permanência de Pinochet na presidência, confirmada em plebiscito. Também o mercado aberto (muito aberto) fazia do país o paraíso do consumo, com shoppings e importados por toda parte. Pedalando me refugiava, reencontrando minha natureza, mas a cada dia estava mais envolvido pela banalidade urbano-consumista que mantinha a classe média chilena saciada e bem comportada. Ao mesmo tempo, imaginava o Brasil em pleno processo de abertura política, com novos ares, possibilidades, praias, sol e a natureza verdejante maravilhosa da Serrinha. Despedi de pessoas muito queridas e voltei, decidido a não perder a alma em qualquer esquina dos espelhados e luxuosos shoppings de Santiago.

O pequeno avião da FAB decolou devagar, iniciando três dias de viagem. Eu precisava muito desse retorno lento, em escalas, para organizar a mente e o coração. Era um dos vôos regulares do Correio Aéreo Nacional, que transportava encomendas e documentos oficiais. Um funcionário consular de terno e pasta preta dormia o tempo todo, compondo um personagem digno para inspirar um bom livro de espionagem. Sobrevoamos baixo a imensa Cordilheira dos Andes, apreciando detalhes de seus picos, neves, pedras e lagos. Na segunda noite, em Porto Alegre, um muro pichado revelava um novo país. Meu país.

10. Sobre duas rodas

Fiz muitas viagens sobre duas rodas. Primeiro as pedaladas fujonas de adolescente, ousando a travessia de túneis e descobrindo como os bairros da Zona Sul do Rio estão todos muito perto. Depois quase profissional, competindo em ciclismo de estrada, com momentos especiais, como a travessia da ponte Rio-Niterói, Rio-Angra, Rio-Cabo Frio e os muitos treinos ao amanhecer, na cidade deserta e silenciosa, por São Conrado, Barra, Recreio, Paineiras... Mas sensação de viagem mesmo foi pegar a Dutra de bicicleta sozinho, da Rural até a Serrinha, em 1979, em deliciosas 5 horas sem parada. As rodas fazem o mundo pequeno.

No Chile eu tinha uma Honda 125. Pequena e rápida, quase um milagre! Lembro de estar numa estrada rumo ao sul com nuvens negras no horizonte, a dúvida me atazanando e mandando voltar... Mas segui em frente e o tempo abriu, se curvando à minha convicção.

Viajar de moto é mágico. O contato com os elementos é muito intenso e o corpo inteiro sente o estar viajando. Uma das travessias mais importantes foi rumo a Santo Antônio, para lá de Mauá, no sítio de amigos, onde conheci um viver alternativo mais rural e próximo da realidade da roça, junto com minha companheira. Engraçado foi a chegada. Depois de quase 70 km sem imprevistos por estradas tortuosas, finalmente chegamos. Parei a moto (alta, XL 350) no centro da estrada, acenando para os amigos que tentavam descobrir quem estava dentro do capacete, mas não vi que era o ponto mais elevado da estrada e simplesmente meus pés não alcançaram o chão. Tombo, risos e abraços! Aí já era 1990, mais ou menos, e eu começava a me aprofundar no universo montanhoso da Mantiqueira.

sexta-feira, 24 de abril de 2009

9. Toque 2: O cálice do infinito

É pequena a ponte entre a plenitude do universo e o coração de cada um. Porque a verdadeira essência do infinito não é medida no espaço e sim no sentir. O infinito é um sentimento que transborda sem parar no cálice da alma.

sexta-feira, 17 de abril de 2009

8. De mala e cuia

Finalmente em julho de 83, com 23 anos, fiz a viagem decisiva, deixando Copacabana e me mudando para a Serrinha. Foi quase uma epopéia, com todos os testes de conviccção que a empreitada merecia. O apiário já estava instalado e eu me sentindo pronto para uma vida nova, tendo a apicultura e o sítio da família como lastros de sobrevivência. O ano de trabalho na Coonatura foi fundamental na decisão. Adeus minha cidade, pode me chamar de refugiado ambiental. Chega de calor, engarrafamento, barulho, multidão, indiferença.

Amigos me acompanharam na mudança. Saímos à tarde, eu de moto (uma pequena, pesada e simpática Harley Davidson 125) e eles de carro, uma Variant. Paramos no Belvedere, no início da serra, para abastecer. Eles prosseguiram animados e eu... Senti a moto enfraquecer e parar ali mesmo. Consegui carona até a Seropédica, onde tinha mecânicos conhecidos dos tempos da Universidade Rural. Rebocamos a moto, que lá ficou para retificar o motor. Já de noite, retornei ao posto e pedi carona, decidido a chegar e completar a mudança, mesmo que fosse a pé.

Horas depois, quase madrugada, estava na entrada de Penedo. Dali caminhei cerca de 12 quilômetros até a casa onde me esperavam, aflitos (não havia telefone, muito menos celular). Cheguei embalado nas cores e sons do amanhecer, cansado, mas feliz por ter chegado apesar dos imprevistos. Fingia não saber, mas sabia que a vida mal estava começando e os maiores desafios logo viriam.

7. Toque

“De fato a paixão é uma força que agarra por dentro. Agarra por dentro. A vida me agarrou por dentro e agora sei a diferença entre estar vivo e viver. Estou engajado em viver.” (1998)

terça-feira, 14 de abril de 2009

6. Pantanal

O Pantanal é quase a antítese da montanha. Plano, encharcado e quente, revela uma natureza exibicionista, que contorna em curvas suaves os muitos lagos e rios, alternando matas e campos. Nas áreas abertas pastam grandes rebanhos em coexistência com animais nativos como jaburu, garças, porcos do mato, veados. Ao por do sol o céu fica lotado de pássaros de todas as formas e cores, buscando seus ninhos. Os jacarés olham o paraíso com fingida indiferença e somem em segundos num repuxo de água.


Pelo menos assim foi o Pantanal que encontrei no verão de 82. A vinda de uma querida amiga chilena propiciou a viagem iniciada em São Paulo, no trem para Corumbá. Partimos em quatro, dois casais de amigos. Nosso destino era a fazenda de uma tia do amigo que estava no grupo. Passamos vários dias em Corumbá aguardando o caminhão que nos buscaria. Lá esperamos hospedados na mais perfeita espelunca, uma casa velha transformada em hotel, cheia de trincas e pulgas. Esgotadas as opções de turismo na cidade, o calor, a coceira e a umidade acabaram por nos lançar na estrada, decididos a ganhar terreno e encontrar o tal caminhão mais adiante. No ponto combinado esperamos acampados num pequeníssimo povoado na beira de um rio, onde nos fartamos de pintados e outros peixes. Deixei de ser vegetariano por um tempo, decidido a não morrer de fome. Após alguns dias comendo peixe e driblando mosquitos partimos na boleia do caminhão.

A chegada na fazenda foi comovente. Os empregados nos receberam como enviados, mataram um boi e prepararam a enorme casa vazia. Os dias passavam lentamente na rotina daquele mundo fora do mundo. Acompanhamos os peões no trabalho com o gado, tomando tererê com as águas cristalinas dos brejos, assistimos ao manejo dos porcos do mato, os catetos, que eram castrados a frio, em minutos, e deixados no bando selvagem para engorda e posterior caça. Comíamos carne em três refeições, às vezes com farofa e arroz também. Nenhuma verdura. Por sorte as laranjeiras carregadas nos saciavam na sombra boa parte do tempo. De tarde, ao refrescar, eu saía para correr nas praias, desviando de eventuais jacarés. Ou boiava numa pequena canoa cercado de pássaros e cores do por do sol. Às vezes chovia dias seguidos e minha amiga praticava uns belíssimos exercícios de dança que eu apreciava com finjida indiferença. Em certo momento todos do grupo andávamos cada um para um lado, noutro estávamos sempre perto. Vivenciamos bem a rotina do isolamento. Nada de luz, televisão...

Nosso retorno foi adiado várias vezes, esperando as estradas se recuperarem das chuvas. Minha amiga acabou perdendo o sonhado carnaval carioca, mas cedeu aos meus argumentos de que nunca, ninguém, em tempo algum, veio ao Brasil para passar o carnaval e ficou ilhado numa remota fazenda, cercada de beleza e lonjura...


domingo, 12 de abril de 2009

5. Adeus Sete Quedas


Julho de 1982. (Este blog não é cronológico. Avança e volta no tempo conforme o vento e a memória.)

A notícia da inundação do Parque Nacional de Sete Quedas veio como bomba. O fechamento das comportas da represa de Itaipú deixaria inteiramente por debaixo d'água, por uns poucos metros, as sete grandes quedas do Rio Paraná e a floresta circundante. Nem mesmo o status de Parque Nacional poderia impedir o massacre. O clima de restauração da liberdade, em pleno governo do General Figueiredo permitiria o protesto, mas jamais possibilitaria mudar a história. Numa tentativa de compensação do estrago, o mesmo presidente decretou a ampliação do Parque Nacional do Itatiaia, que passou de 15 para 30 mil hectares, em áreas até hoje não indenizadas. Impagáveis, as sete quedas silenciariam mas nós não podíamos calar. Na época eu trabalhava na Coonatura, no Rio, em contato com muita gente que praticava ecologia de forma integral. Alugamos (e lotamos) uma kombi e pegamos a estrada para nos juntar aos milhares que foram se despedir das cachoeiras, pouco antes da proibição do acesso de brasileiros ao ex-parque por decreto-lei, publicado no dia 29 de setembro. Fomos numa pernada, pelas rodovias Dutra e Castelo Branco, parando para dormir dentro do carro por algumas horas e chegando no dia seguinte. Lá acampamos e nos juntamos com gente de todo o sul e sudeste do Brasil, em vários dias de eventos, palestras, dinâmicas, danças. Em algum momento lembro de ter ido ao microfone dizer que nossos filhos voltariam para assistir o ressurgimento das quedas, quando Itaipu, assoreada, fosse desativada. Um índio morador da região de despediu das cachoeiras, ricas em sons, vozes e conselhos. Encontros especiais agitaram os corações. Voltamos cansados, alegres, derrotados e vitoriosos.













Adeus a Sete Quedas

Sete quedas por mim passaram,
e todas sete se esvaíram.
Cessa o estrondo das cachoeiras, e com ele
a memória dos índios, pulverizada,
já não desperta o mínimo arrepio.
(...)
Sete quedas por nós passaram,
e não soubemos, ah, não soubemos amá-las,
e todas sete foram mortas,
e todas sete somem no ar,
sete fantasmas, sete crimes
dos vivos golpeando a vida que nunca mais renascerá.

(Drummond: 100 anos Carlos Machado, 2002
Carlos Drummond de Andrade In Jornal do Brasil, Caderno B09/09/1982© Graña Drummond)

quinta-feira, 9 de abril de 2009

4. Colar Pataxó

Hoje saí cedo para caminhar na mata. Ao regressar me vi sem o colar pataxó que comprei de uma índia no ano passado, na Conferência Nacional do Meio Ambiente, e que recomecei a usar recentemente. Ela me disse que o colar protegia de energias negativas e que se romperia ao estar muito carregado (na época comprei três...). Quando acontecesse, deveria ser deixado na floresta. E lá ficou. Parece um bom sinal, ainda mais junto com muitas transformações: A viagem se estruturando, a editoria ambiental na Folha Fluminense, o conselho gestor de Mauá se consolidando, novos projetos em construção e o nascimento de um novo olhar sobre a vida.

terça-feira, 7 de abril de 2009

3. Nuvens de Cordilheira

Em julho de 1979 entrei no ônibus da Pluma do Rio a Santiago, para conhecer por duas semanas o país onde poderia ir morar no ano seguinte. Aí comecei a ter noção da continuidade territorial que une os paises da América Latina. No terceiro dia, após 24 horas na imensa planície semi-árida da Argentina, vejo o horizonte se carregar de nuvens. Uma onda branca cada vez maior domina o horizonte e cresce. Cresce e se revela na imensidão da Cordilheira dos Andes nevada. Após atravessar a linda cidade de Mendoza avançamos pela estrada que leva ao Chile. A cada curva novos picos se destacam contra o azul cristalino do céu de altitude. Na fronteira, a 4 mil metros, tudo branco e gelado ao redor. Meus pais me receberam na rodoviária de Santiago e pouco depois estava no apartamento onde moravam, onde fui batizado com um banho de água congelante... Afinal, o gás sempre acaba com alguém no chuveiro. Bem vindo a Santiago, Chile.

domingo, 5 de abril de 2009

2. As portas da América Latina

Viajar sempre fez parte da minha vida. Quando criança, década de 60, o percurso Rio-Serrinha, em Resende, parecia uma eternidade. De fato demorava mais do que hoje. Os carros eram fuscas e não existiam os elevados para sair do Rio. Eram dezenas de sinais vermelhos... A família era viajante. Meu pai aproveitava reuniões de trabalho e levava todo mundo. Lembro de irmos a Assunção, Paraguai, em 1970. Quase morri intoxicado por repelente de mosquitos que ingeri roendo as unhas... Vimos Sete Quedas, ainda intactas, sem Itaipu. Em 1972 fomos à São Luiz do Maranhão, atravessando umas retas intermináveis no Piauí. Na volta, fevereiro, com 5 no carro, o calor era terrível... mas sobrevivemos. No mesmo ano, em julho, conhecemos as cidade históricas de Minas. Na volta, sofri a primeira perda em minha vida com a morte do meu avô, que nos deixou o lindo sítio onde moro. Poucos anos depois começaram as operações de ponte safena, que teriam salvo a vida dele. Desencontros... Na adolescência vieram outras viagens. Na formatura do Ensino Médio fomos à Bahia num ônibus só dos alunos... nem dá pra contar. Depois comecei a gostar de andar sozinho. Ia sozinho para o sítio e em 78 conheci Mauá, em plena expansão do movimento alternativo. Me impregnei da sua magia, muito diferente dos tempos no Repouso Maringá, que também frequentava ainda bem criança. Em 79 viajei para o mundo dos adultos, se é que dá pra dizer isso quando vamos morar sozinhos. Foi um ótimo ano numa casinha da Seropédica, que na verdade dividi com um amigo, muito amigo até hoje. Estudava Engenharia Florestal na Rural. No mesmo ano meu pai foi trabalhar na FAO, no Chile, e aí se abriram as portas desse universo que chamo de América Latina.

sábado, 4 de abril de 2009

Primeiro post: O começo da viagem é mistério

Comecei escrevendo sobre viajar, viagem, via. Quando minha madrinha no blog leu disse que não era nada disso, que primeiro eu tinha que me apresentar, que afinal primeiro post é primeiro post. Então, lá vai:

Empreendedor social da Ashoka, gestor ambiental e jornalista. Morador e amante das montanhas e das florestas. Amigo e parte da Natureza. Dirijo a ONG Crescente Fértil, participo da mobilização nacional pelos Ecossistemas de Montanha, sou um dos fundadores da Rede Andino-atlântica de Ação pelas Montanhas. Dirigi o órgão ambiental de Resende, de 1993-96 e de 2006-08.

Este blog nasce para relatar uma viagem que não tem data de partida. Mas provavelmente já começou.

A viagem começa pela busca do caminho. Via, segundo http://michaelis.uol.com.br/, é o caminho ou estrada por onde se vai de um ponto a outro; nome dos grandes caminhos construídos pelos romanos; lugar por onde se vai ou se é levado; direção, linha; rumo, direção, derrota, rota ; meio, modo, método, sistema. Astrologicamente, via láctea: nebulosa que forma uma larga faixa esbranquiçada que em noites escuras se vê no céu e que abrange quase um círculo máximo da esfera celeste; caminho de São Tiago; via sacra, vias de fato, via pública, via de regra, segunda via.

O começo da viagem é mistério. Pode ser na decolagem, no embarque, no primeiro passo. Esta via começou ontem, quando compartilhei minha decisão aos amigos, vizinhos em nossa América Latina:

"Ayer me paso algo curioso… En viaje para una reunión del consejo de la sierra Mantiqueira, no lejos (100kms), por 3 veces me perdí por una ruta super conocida. Mientras volvía y me perdía una vez más, me impregnaba de la sensación de viajar, del constante cambiar de paisajes, de la conciencia de nuestro tamaño en el mundo y del tamaño de todo. Tenía la sensación de parto, como si me naciera desde la mente una motivación muy fuerte para hacer algo que pudiera significar algo nuevo.

Fue en este tramo de la ruta (y de mi vida) que decidí realizar un proyecto que lo tengo calentado hace años y me parece que llego el momento de organizarlo concretamente. Es un viaje en auto por america latina, desde acá, visitando proyectos socio ambientales en montaña o que estén por el camino. Todavía hay que madurar algunos puntos, pero la idea central es documentar, divulgar y contribuir para la integración de iniciativas socioambientales en desarrollo, con una mirada más específica en la percepción de la gente acerca del cambio del clima en sus lugares. El recorrido va depender, en parte, de las posibilidades de hospedaje solidario que venga a encontrar, pero imagino que emprendedores sociales me reciben sin problema, sobretodo si es para documentar su trabajo."


Este blog acaba de nascer. Nele pretendo relatar os próximos passos. O percurso inclui estradas de asfalto, de terra, trilhas, sonhos, pensamentos e caminhos do coração. Acompanhe e participe.